O crime está em guerra: as maiores facções brasileiras romperam
Brasil
Publicado em 03/01/2017
ALINE RIBEIRO, COM HUDSON CORRÊA E HELENA FONSECA
25/10/2016 - 08h00 - Atualizado 25/10/2016 10h02
Policiais revistam detentos na Penitenciárias Agrícola de Monte Cristo,em Boa Vista,Roraima  (Foto: Reuters)

Há um mês, o detento Waldiney de Alencar Sousa procurou a direção da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, Roraima, com um pedido de ajuda. Estava jurado de morte por outros presos. Queria, portanto, ser transferido para longe dali. Sua solicitação foi acatada, mas esbarrou nos burocráticos sistemas prisional e judiciário. Enquanto era feita uma varredura pelas unidades prisionais em busca de uma vaga, seus algozes agiram. Na tarde do domingo, dia 16, dia de visita, Waldiney se despediu da mulher no portão. Voltava para o interior do presídio quando foi atacado pelos inimigos. Chegaram até ali, a ala dos adversários, depois de quebrar cadeados e escavar buracos nos muros que dividem o espaço entre as organizações criminosas dentro da cadeia. A cabeça de Waldiney foi quebrada com pedras. Seu crânio terminou esfacelado.

Como quase sempre acontece, os presos foram mais rápidos que o Estado, e Waldiney – ou Vida Loka, no batismo do crime – morreu logo depois de completar 33 anos. Na mesma cadeia, outros nove detentos foram assassinados num espetáculo de selvageria e demonstração de poder. Alguns corpos foram decapitados; outros, queimados numa fogueira. Horas mais tarde, a 1.700 quilômetros de distância, algo muito parecido assombrou Porto Velho, em Rondônia. Oito presos morreram asfixiados pela fumaça na Penitenciária Ênio dos Santos Pinheiro. Não se tratava de uma coincidência infeliz. Era um surto coordenado.

A ordem para a matança foi dada em setembro deste ano, dias antes de Waldiney revelar as ameaças. Partiu da penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, onde está detida a cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior organização criminosa do Brasil, que domina os presídios paulistas. Numa carta escrita à mão, assinada pela “sintonia final”, os chefes do bando paulista mandaram um “salve” nacional declarando guerra à facção carioca Comando Vermelho (CV), sua antiga aliada, parceira comercial e hoje maior concorrente. A mensagem, possivelmente transposta para fora da prisão por advogados ou familiares, foi digitalizada e distribuída via WhatsApp aos presídios que estão “no ar”, na gíria da bandidagem – aqueles que não contam com bloqueadores de sinal para telefones celulares. Alastrou-se rapidamente até a Região Norte do Brasil.

>> A íntegra do “salve” que explica as guerras entre facções

ÉPOCA teve acesso ao conteúdo desse informe. Nele, a organização explica os motivos da briga. Os tropeços no português apenas ressaltam a selvageria que está por vir. “Este Salve tem como finalidade esclarecer o que vem acontecendo nas prisões espalhadas pelo país. Há muito tempo Estamos procurando a liderança do Cv  para mantermos a harmonia entre nossos integrantes e corrigir de ambos os lados, situações que fogem do bom convívio e até da ética do crime. (...) não tivemos atenção e tão pouco recebemos respeito. A partir do momento que o CV iniciou uma expansão pelos Estados, se aliando aos nossos inimigos (FDN, pgc, sindicato, Bonde dos 40 ) e respondendo Pelas atitudes desses, já se tornou um desrespeito a nós. Nosso lema é o crime fortalecer o crime, nunca buscamos esses conflitos, porém não vamos ficar quietos se formos atacados por quem quer que seja (...) Deixamos claro que estamos prontos para a guerra uma guerra esta sendo criada pelo Cv. Estamos prontos para reagir de imediato a qualquer ataque que viemos sofrer, não concordamos com essa guerra que beneficiará somente a polícia, mas não iremos nos omitir.”

PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho) (Foto: Revista ÉPOCA)

A rixa local que culminou na execução brutal de Waldiney é um reflexo da guerra entre as duas maiores organizações criminosas do país recém-declarada pelos informes. Trata-se de uma disputa de mercado. De uma briga por um naco dos bilhões movimentados ilegalmente, todo ano, pelo tráfico de drogas no Brasil. Assim como empresas, facções criminosas têm uma hierarquia rígida e responsabilidades atribuídas a cada posto. Assim como no mundo corporativo, seus integrantes competem por cargos e salários melhores. Mudar de companhia, ou de organização criminosa, é uma das mais eficazes maneiras de subir na carreira. Waldiney foi um dos três responsáveis por levar o PCC a Roraima. Batizou-se como integrante da facção paulista com direito a padrinho, número de matrícula e apelido. Cumpria pena por roubo, homicídio e tráfico. Mais tarde, ao perceber que estava estagnado, decidiu sair em busca de novos desafios profissionais. “Como não alcançou um posto de maior representatividade no PCC, ele se rebelou e começou a desenvolver uma célula do Comando Vermelho aqui em Roraima”, afirma o promotor Marco Antônio Bordin, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Roraima. A oportunidade que vislumbrou estava na organização carioca.

No empreendimento criminoso, trabalhar significa roubar, matar; trocar de emprego pode significar a morte. Waldiney fez isso ciente do risco que corria – o nono artigo do estatuto do PCC diz que “aquele que pedir para sair poderá ser visto como traidor, e o preço da traição é a morte”. Com a troca de facção, por medida de segurança Waldiney foi transferido para um presídio em Mato Grosso do Sul. Mas voltou ao Norte a pedido de sua defesa e acabou assassinado na rebelião. Num dos “salves” enviados pela organização carioca aos presídios na última semana, Waldiney foi lembrado como “presidente” do estado. O reconhecimento que tanto almejava veio numa homenagem póstuma, numa mensagem distribuída por seus colegas de crime. “Ouve uma ação ousada e fatal do PCC contra nossa família CVRL no estado de Roraima, onde nessa ação foram assassinados vários irmãos nossos inclusive o próprio presidente do estado, nosso irmão Vida Loka e outros irmãos nosso (sic)”. 

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O Comando Vermelho é, digamos, uma organização mais tradicional. Foi criado em 1979, no presídio da Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro, da união entre criminosos comuns e presos políticos oriundos de organizações que lutaram contra a ditadura militar. Controla o maior contingente de criminosos no Rio de Janeiro, com braços nas regiões Norte e Nordeste e bases em Paraguai, Colômbia, Bolívia, Peru e Venezuela. A facção paulista está presente em todos os estados brasileiros e faz negócios – ilegais, claro – em Bolívia, Paraguai, Colômbia, Peru, Argentina, Chile, Venezuela e Guiana Francesa. Se fosse uma empresa, o PCC teria a envergadura de uma multinacional – com a diferença que seu negócio envolve drogas, armas e, por ser ilegal, implica roubo, assassinatos e outras violências. Há funções específicas para cada cargo, metas mensais e cobrança por eficiência. Até mesmo o vocabulário adotado se assemelha ao universo corporativo. Biqueira é “loja”. O dinheiro do tráfico, “capital de giro”. Faltar com clareza numa explicação à chefia é não ter “transparência”.

Sua organização financeira é considerada sofisticada – talvez não tanto quanto à exposta por algumas empresas envolvidas na Operação Lava Jato. O dinheiro arrecadado com a venda da droga é depositado em pelo menos cinco diferentes caixas, cada um a serviço de uma finalidade. Um deles, por exemplo, garante recursos para que cada preso receba, todos os dias, 3 gramas de maconha e um maço de cigarros na cadeia. Outro é usado na expansão territorial, para subsidiar viagens ao exterior a fim de “batizar” parceiros de outras facções. Um terceiro, para a aquisição de armas. Estima-se que seu faturamento passou de R$ 10 milhões para entre R$ 100 milhões e R$ 200 milhões em uma década. A organização controla hoje mais da metade da venda de entorpecentes do país. Nesse concorrido mercado ilegal, o PCC é imenso, mas não é único. Disputa espaço com o Comando Vermelho e outra facção, a Amigos dos Amigos, conhecida pela sigla ADA. Além de outras menores, espalhadas pelo Brasil.

PCC e CV estiveram juntos numa operação complexa, vantajosa e barulhenta em 15 de junho deste ano na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com a brasileira Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. O vídeo de uma câmera de segurança marcava 18h44 quando um Toyota Hilux prata parou no cruzamento. O veículo esperou ser alcançado, propositalmente, por um Hummer preto escoltado por três carros. De repente, a porta traseira do Hilux se abriu e disparou uma rajada de balas. A rua se iluminou com os tiros. O alvo, dentro do Hummer, era o brasileiro de origem libanesa Jorge Rafaat Toumani, de 56 anos. Seus capangas, armados com pistolas automáticas de fuzis, não tiveram nenhuma chance diante dos mais de 100 tiros disparados contra ele. Até uma metralhadora antiaérea foi usada para perfurar a grossa blindagem do Hummer, em um procedimento digno de ataques perpetrados em zonas de conflito armado como Iraque e Afeganistão.

>> “Dono” de presídio no Paraguai preocupa segurança pública no Rio

As alianças regionais (Foto: Fontes: Ministérios Públicos Estaduais de AM, RN, PB, SC e MA)

Conhecido como Rei da Fronteira, Rafaat era o último obstáculo para que a organização paulista dominasse o caminho das armas e drogas vindas do Paraguai. Procurado no Brasil, Rafaat cometia seus crimes com certa paz no Paraguai. Operava independente das duas organizações e tinha um mercado cativo. Sem chance de cooptá-lo, as facções recorreram ao extermínio. Apesar de ter sido um sucesso do ponto de vista dos criminosos, a operação pode ter contribuído para estremecer a relação entre as organizações paulista e carioca. “Juntas, elas estruturaram o Narcossul, o primeiro cartel internacional de drogas com sede no Brasil”, afirma o procurador de Justiça de São Paulo Márcio Sérgio Christino. “Mas agora o Comando Vermelho percebeu que o PCC tomou aquele trecho e que não terá mais o acesso que imaginava. Então se estranharam.”

>> Versão genérica de facção paulista comanda ataques no Rio Grande do Norte

A relação harmônica começou a ser minada há três anos por conflitos pontuais, envolvendo facções menores que atuam em presídios de estados fora do eixo Rio-São Paulo. A organização paulista tem uma política agressiva de expansão de territórios, não raro contida pelas idiossincrasias de cada lugar. Esses pequenos grupos locais, com regras e códigos de condutas próprios, muitas vezes não aceitam a imposição das normas rígidas dos forasteiros. “Existe um receio de que o PCC se torne hegemônico no tráfico”, afirma o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco de Presidente Prudente. Assim começam os conflitos. O Comando Vermelho se aproveitou do mal-estar entre essas pequenas facções e os paulistas para formar alianças regionais com Família do Norte (FDN), do Amazonas; Primeiro Grupo Catarinense (PGC), de Santa Catarina; Sindicato do Crime (SDC), do Rio Grande do Norte; Bonde dos 40, do Maranhão; e Okaida, da Paraíba. Em troca, esses bandos ganham abrangência nacional e se fortalecem na oposição ao PCC.

Desde os primeiros sinais de racha, os presídios entraram em ebulição. No Rio de Janeiro, quase 100 presos da facção oriunda de São Paulo foram realocados antes da matança no Norte, no final de semana. Em Porto Velho, 96 detentos foram transferidos para diferentes unidades de Rondônia depois dos assassinatos. Um início de motim em Pacatuba, no Ceará, terminou com grades quebradas e detentos soltos no pátio. Em Rio Branco, no Acre, 25 membros de uma organização invadiram a cadeia e deixaram quatro feridos. Um dos criminosos acabou preso. Em Manaus, no Amazonas, os bandidos foram mais longe: falaram em “espalhar o terror” dentro e fora das penitenciárias e ameaçaram de morte promotores, juízes e o secretário de Segurança. Reivindicam que os chefes da facção local, a FDN, sejam mandados de volta a Manaus, para presídios mais seguros.

Os integrantes das mais diversas quadrilhas mandaram recados também aos oponentes – pelo WhatsApp, direto dos presídios. Numa patética tentativa de demonstrar força, os detentos usaram a internet para exibir seu potencial bélico. Num dos vídeos, membros da facção paulista desafiam os rivais com fuzis AK-47 e AR-15. Num outro áudio, um grupo inimigo convoca todas as facções menores a se unirem para exterminar os paulistas: “Vamo ajuntar ai essas facção que são fechada com nois e vamo por no vermeio essa porra. Esses cara vão sair da frente”. Diante de uma das mais graves crises de segurança pública nacional dos últimos tempos, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, restringiu-se a dizer que não faz comentários “sobre grupos criminosos”, mas admitiu que a situação nas cadeias é “gravíssima”. “Não é possível combater de forma séria e dura o crime organizado se não começarmos pelos presídios”, disse durante a apresentação do novo secretário da Pasta para o Rio de Janeiro, Antônio Roberto Sá, na segunda-feira, dia 17. Um dia depois, Moraes determinou o envio de membros do Departamento Penitenciário Nacional para Boa Vista, em Roraima, para investigar os crimes.

>> Um sobrevivente do tribunal do crime

PÂNICO INSTAURADO Em setembro deste ano, a maior organização criminosa do Brasil declarou guerra a sua antiga aliada – e disparou uma série de rebeliões com mortes (Foto: ÉPOCA)

 

 

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