O Poder Judiciário está em ascendência — e está sendo julgado
Opinião
Publicado em 13/02/2018

 

 

Por Vera Chemim

Pelas reações verbais e escritas de profissionais envolvidos na defesa de processos criminais de pessoas reconhecidamente poderosas, tanto do ponto de vista político quanto econômico, é possível concluir que o Estado Democrático de Direito estaria sendo implodido pela Justiça e, nesse caso, por todas as instâncias do Poder Judiciário brasileiro. Em outras palavras: o Poder Judiciário estaria sendo acometido de modo irreversível pelo ativismo judicial, entendido sob a sua ótica pejorativa.

Os recentes julgamentos e consequentes condenações penais teriam se tornado parciais, político-ideológicos afrontando mortalmente a Constituição Federal, as leis e privilegiando valores e princípios de cada magistrado ou de cada colegiado. Isso no sentido de fazer prevalecer a suposta superioridade do Poder Judiciário, relativamente aos demais poderes públicos, além de negar ou anular quaisquer das garantias e direitos fundamentais daqueles cidadãos envolvidos em atos ilícitos penais.

São diversos os exemplos representativos dessas reações, especialmente o julgamento e condenação do ex-presidente Lula e de vários outros envolvidos e julgados no âmbito da operação "lava jato" em vários estados.

Ao que parece, o Poder Judiciário, que durante muitas décadas esteve praticamente impotente, convalido e tímido, perante uma minoria da sociedade civil que, ao deter uma significativa parcela de poder econômico ou político mantinha-se incólume, ao praticar quase que permanentemente atos ilícitos contra a administração pública e, por conseguinte, em detrimento do bem-estar da população em geral, agora renasce finalmente das cinzas, feito fênix.

A assertiva acima pode ser corroborada de várias formas, a julgar pela firmeza e serenidade com que os membros do Judiciário têm demonstrado ao enfrentar toda a sorte de obstáculos para fazer cumprir o império da lei.

Na mesma medida, a mensagem transmitida na abertura do ano judiciário pela ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, remete ao fato de que o Poder Judiciário precisa ser um poder suficientemente forte para enfrentar constantemente as pressões de toda ordem, além de poder fazer face a uma das suas principais características, que é a de um poder moderador — isto é, capaz de efetivar o seu controle externo sobre os atos dos demais poderes públicos, quando for necessário.

O renomado jurista italiano Mauro Capelletti já afirmou que, diante do gigantismo do Poder Legislativo de um lado e do outro o gigantismo do Poder Executivo, é preciso que o Poder Judiciário se eleve ao nível daqueles poderes, tornando-se um terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador. Isso equivale a afirmar que o Poder Judiciário pode e deve agir, especialmente quando se trata de defender a Constituição e as leis, visando ao bem comum.

Do ponto de vista histórico, há que se constatar o caráter cíclico que caracteriza a supremacia de um poder sobre o outro, provocando, inevitavelmente, as diferentes formas de intervenção estatal, em consonância com cada momento político vivido, tanto a nível mundial quanto no contexto de cada país e do estágio de seu desenvolvimento.

Capelletti corrobora essa afirmação ao observar oportunamente que não nos lembramos suficientemente de que a magistratura é um dos grandes ramos da “árvore” do government do país. Além disso, ele explica que o seu poder sujeita-se a crescer e a diminuir. As condições que agem sobre o Executivo e o Legislativo, determinando o caráter dos seus poderes, agem também sobre o Judiciário.

As duras críticas que tem recebido, somadas aos dos membros do Poder Executivo e do Legislativo e de alguns grupos representativos da sociedade civil, quanto ao seu suposto ativismo judicial e consequente afronta aos dispositivos constitucionais, precisam ser ponderadas e melhor avaliadas, tendo como pano de fundo as verdadeiras prioridades sociais e políticas, especialmente as conjunturais, para se poder aferir com maior segurança e justiça as recentes decisões judiciais.

A partir dessa realidade, é oportuno analisar alguns aspectos que podem ser úteis na avaliação de tais críticas de natureza constitucional, penal e processual penal, para que se chegue a uma conclusão imparcial, embora não definitiva por razões óbvias sobre a atuação do Poder Judiciário de modo geral.

Os temas a seguir, objetos daquelas críticas, vão desde a suposta afronta aos dispositivos constitucionais, principalmente ao princípio da presunção de inocência e ao princípio da separação de poderes, até a imposição de prisão preventiva por tempo indeterminado e condução coercitiva, além de “cerceação do direito de defesa” e supostas condenações “sem provas”.

Tais debates particularmente polêmicos, especialmente por envolver personagens poderosos da vida política e econômica do Estado brasileiro e que desprezam ou omitem veladamente as pessoas pobres ou negras que são impossibilitadas de sequer contratar uma defesa digna e permanecem encarceradas durante boa parte de suas vidas, acabam sendo deturpados. Isso ora pelos interesses em jogo, ora pela própria mídia que, algumas vezes, é ou está passível de receber informações já maculadas que, no desenrolar dos fatos, denigrem o verdadeiro conteúdo da legislação, incluindo-se aí o da Constituição Federal e, por consequência, a imagem do Poder Judiciário.

Em primeiro lugar, a ciência do Direito é humana, ou seja, carece de mudanças de toda a ordem e de modo constante, para seguir acompanhando a evolução da sociedade, quanto aos seus valores e princípios. Porquanto, a legislação e mesmo a Constituição Federal necessitam ser reformadas ou emendadas pelo Poder Legislativo para que, no mínimo, mantenham-se não apenas atualizadas, mas, principalmente, mais próximas do que a sociedade civil brasileira entende por justiça e moral.

Não é à toa que nos países common-law os costumes e a jurisprudência estão em igualdade com a lei e a Constituição, embora esta seja hierarquicamente superior na pirâmide de Hans Kelsen. Nos países civil law, a Constituição e a lei têm primazia sobre os costumes, conforme determina o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto 4.657/1942). No entanto, quando o conflito a ser solucionado depende de mais elementos, que eventualmente não estão presentes naqueles diplomas legais ou que, no caso da Carta Magna, algumas normas não tenham eficácia plena, usando a classificação de José Afonso da Silva, isto é, dependam de lei ainda não editada pelo poder competente, há que se fazer uso da analogia (se for possível), dos costumes e dos princípios gerais de Direito, além da jurisprudência da corte máxima do país.

Além disso, o artigo 5º, da mesma norma, prevê que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. Nesse sentido, a lei vai buscar a aproximação com o atual conceito de justiça aspirado pela sociedade.

Embora tais assertivas provoquem calorosas discussões acadêmicas, o que se tem de fato é a constante procura de uma lei justa e adaptada às aspirações sociais. No tocante à Constituição Federal de 1988, Kelsen afirmaria que o Poder Constituinte Originário, à época, teria promulgado a Magna Carta com base no que a ruptura pacífica de 1984 teria demandado de seus legisladores: o que se entendia por uma norma justa naquele fim de década.

Uma vez a lei posta no ordenamento jurídico, ela teria que ser atendida, independentemente de ser ou não justa, a menos que as normas legais e constitucionais fossem revisadas ou emendadas posteriormente, de acordo com o atual conceito de justiça da sociedade. Por outro lado, Ronald Workin e, de modo especial, Robert Alexy e John Rawls argumentariam que as normas podem e devem ser flexibilizadas, ponderadas, para melhor atender ao que a sociedade entende como justas e de acordo com os preceitos morais.

Partindo desses pressupostos, a jurisprudência de um tribunal superior é uma das principais fontes do Direito e precisa ser respeitada. Assim, no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal é o guardião máximo da Constituição Federal e tem a competência constitucional de tomar decisões que, em sede de repercussão geral e com tese fixada, representam o “maximum” em Direito.

Nada mais natural de que um tribunal encarregado de vigiar a obediência à Constituição tome decisões que venham a mudar o seu entendimento, com base em fundamentação jurídica sólida e direcionada ao bem comum da nação. Não se trata de uma postura punitivista x garantista ou no que tem caído no senso comum, “câmara de gás” ou “jardim do Éden”, e sim a preocupação em fazer da Constituição e da legislação instrumentos que venham a servir de fato e de direito ao aperfeiçoamento e efetivação da Justiça.

Para tal, as divergências ou convergências entre seus membros representam, na verdade, a tensão entre o atendimento aos princípios constitucionais que protegem as garantias e direitos fundamentais das pessoas com o respeito às necessidades da maioria majoritariamente retratadas pelos representantes políticos que integram o Poder Legislativo que, por sua vez, remete aquelas necessidades ao Poder Executivo para que este as concretize da melhor forma possível.

Os pesos e contrapesos tão conclamados entre os três poderes públicos existem para tentar equilibrar o crescimento exagerado de um deles. No entanto, conforme Capelletti, algumas condições de caráter cíclico podem determinar o aumento ou a diminuição de cada um daqueles Poderes. Assim, as inúmeras disfuncionalidades existentes hoje, no Poder Executivo e, especialmente, no Legislativo empurram as suas próprias atribuições ou competências, sob múltiplos aspectos, ao Poder Judiciário e provocam o seu fortalecimento relativamente aos demais.

Porquanto, as questões relacionadas à judicialização não têm a ver com aquelas disfuncionalidades, e sim com um processo natural de destinação de temas polêmicos ao STF, uma vez que o Poder Legislativo é um poder político e, a depender da natureza do tema a ser debatido e decidido, torna-se conveniente remetê-lo ao Poder Judiciário, cuja decisão será técnica, até porque se trata de um poder contramajoritário.

Os exemplos são vários: aborto, casamento homoafetivo, nepotismo e outros que foram decididos por aquele tribunal, independentemente de serem identificados como decisões ativistas, isto é, exclusivamente jurisprudenciais, sem previsão expressa na Carta Magna ou na legislação, apesar de irem ao encontro das necessidades sociais atuais.

As ditas disfuncionalidades são outras, em razão de várias denúncias e envolvimento de seus membros em processos criminais, incluindo-se aí o Poder Executivo. Assim, o enfraquecimento, desequilíbrio e consequente fragilização daqueles poderes, tanto interna quanto externamente, no que diz respeito a sua imagem perante os seus eleitores, podem ser especialmente constatados, pela destinação frequente de ADIs, ADCTs e ADPFs ao STF, que são ajuizadas por membros do próprio Poder Legislativo e do Executivo, versando sobre temas na sua maioria de natureza interna corporis e que poderiam ser decididos no âmbito daqueles poderes.

A decorrência lógica daquelas disfuncionalidades promove a preponderância do terceiro poder — o Judiciário. Diante do atual contexto, não há como ignorar que o Poder Judiciário brasileiro se encontra em uma fase de intenso fortalecimento, relativamente aos demais poderes.

De um modo geral, o Poder Legislativo sempre foi o poder mais proeminente, por representar a vontade de maioria, num Estado Democrático de Direito. Por outro lado, a história política do Brasil do século XX também denuncia, sem dúvida, a superioridade do Poder Executivo, pelo menos até meados da década de 1980.

Hoje, o que se testemunha de forma absolutamente natural é a ascendência do Poder Judiciário, diante de tantos atos ilícitos cometidos em face da administração pública direta e indireta e que precisam ser julgados e decididos. Nesse sentido, não existem argumentos sólidos que possam comprovar o ativismo judicial, até porque há diversas correntes doutrinárias que fundamentam certas decisões judiciais e que não são necessariamente aceitas pelos profissionais de Direito, especialmente por não estarem inseridas no mainstream.

As críticas dirigidas às recentes condenações supostamente “sem provas”, bem como a afronta ao princípio de presunção de inocência e ao princípio da separação dos poderes, além de outras, constituem exemplos que ratificam a adoção de outras metodologias que contrariam as correntes usualmente utilizadas em direito, no Brasil.

Tais métodos têm origem no Direito americano e tendem a complementar algumas lacunas da lei, como é o caso da Teoria do Domínio do Fato, cujos pilares têm sido aplicados no âmbito da operação "lava jato", principalmente na coleta de provas baseadas em fortes e frequentes indícios que levam não somente aos executores de crimes, como ao seu mentor, mandante ou autor, quando se trata de organizações criminosas.

Vera Chemim é advogada constitucionalista.

 

Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2018, 10h05 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet

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