As pomposas discussões entre ministros no Supremo Tribunal Federal, em que os contendores se chamam de “vossa excelência” mesmo enquanto estão trocando ofensas, podem em breve ficar mais parecidas com brigas cotidianas. Se o Projeto de Lei do Senado 332/2017 for aprovado, os magistrados — e outras autoridades — poderão ser chamados de “senhor” ou simplesmente “você” ou “tu”.
O autor da proposta, que aguarda escolha de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, é o senador Roberto Requião (PMDB-PR). O projeto acaba com “vossa excelência”, “doutor” e todos os outros pronomes de tratamento direcionados a autoridades.
De acordo com o texto, em comunicação oral, os ocupantes de certos postos deverão ser chamados de “senhor” e suas derivações. As autoridades que receberão esse tratamento são o presidente da República e seu vice, governadores, prefeitos, ministros e secretários, parlamentares, magistrados, integrantes do MP e da Defensoria Pública, delegados de polícia, embaixadores, professores, generais das Forças Armadas e coronéis da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros.
Os demais servidores, conforme o PLS 332/2017, podem ser chamados de “você” ou “tu”, excetuados os casos de respeito em razão de idade.
Porém, qualquer cidadão está autorizado a, se quiser, usar os vocativos “você” ou “tu” quando se dirigir a qualquer detentor de cargo público. Além disso, não é preciso usar nenhum pronome de tratamento para se referir a esses profissionais.
Em correspondências ou textos oficiais, todos os funcionários públicos devem ser chamados de “senhor” ou “prezado senhor” — até quando o destinatário estiver abaixo do remetente na hierarquia do órgão.
E se a autoridade exigir ser tratada de outra forma, poderá responder por injúria discriminatória, determina o projeto. O crime, previsto no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, tem pena de 1 a 3 anos de reclusão, além de multa.
“Vaidade das vaidades” Requião apresentou o projeto depois que a procuradora da República Isabel Vieira protestou ao ser chamada de “querida” pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em depoimento ao juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba.
Na ocasião, Isabel pediu que “o senhor ex-presidente se referisse ao membro do Ministério Público pelo tratamento protocolar devido”. Lula então perguntou: “É, como é que seria? Doutora?”. E Moro explicou: “Sei que evidentemente o senhor ex-presidente não tem nenhuma intenção negativa em utilizar esse termo ‘querida’, mas peço que não utilize, tá? Pode chamar de doutora, senhora procuradora, perfeito?”.
Lula, na ocasião, “deu um bom exemplo de cordialidade e respeito que deveriam permear as relações humanas”, afirma o senador na justificativa do PLS 332/2017. “É possível, porém, que ela não fosse do tipo de desejasse ser ‘querida’, mas que fosse do tipo que prefere ser chamada de ‘excelência’. Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade, como afirmava Salomão. Mas a verdadeira excelência de um ser humano revela-se antes de tudo por meio de sua humildade”, argumenta o peemedebista.
Se na democracia todos são iguais — ou, pelo menos, deveriam ser —, aponta Requião, é “incabível” que as autoridades brasileiras continuem recebendo um tratamento protocolar herdado da monarquia, que foi derrubada há quase 130 anos.
Mesmo assim, essas distinções continuam permeando de forma abusiva as relações entre povo e governantes, destaca o parlamentar. E estes, declara, acham que têm “certo direito de serem chamados de excelências ou de outros pronomes de tratamento incompatíveis com a igualdade de todos perante a lei”.
“Pergunto, o que há de excelente em um juiz ou parlamentar? Antes de serem autoridades, são seres humanos e, como servidores públicos, são devedores ao povo da obrigação de lhes prestar serviço e com qualidade. E, em suas funções, não têm o direito de reivindicar do povo um tratamento majestoso. Reserva-lhes somente um direito protocolar: o de ser respeitado. Respeito, porém, é algo que se conquista e decorre, primeiro, do cumprimento do dever de se respeitar o próximo; segundo, das demais virtudes”, sustenta.
O projeto, conforme Requião, busca deixar claro para o “cidadão mais simples” que ele não é inferior ao presidente da República. Afinal, todos somos meros “cadáveres adiados”, diz, citando o poeta português Fernando Pessoa. Sendo assim, “não temos qualquer razão concreta pra exigirmos tratamentos majestosos que em nada dignifica a humanidade”.
“Doutor adevogado” No Brasil, advogados são rotineiramente chamados de “doutor” devido à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, outorgada por Dom Pedro I. A norma, que nunca foi revogada, criou as duas primeiras faculdades de Direito do país — a do Largo São Francisco, em São Paulo, e a de Olinda.
No entanto, não há consenso se a lei realmente estipulou tal forma de tratamento aos advogados. O artigo 9º estabelece que quem concluir os cinco anos de curso obterá o grau de bacharel.
Mas, para receber o título de “doutor”, é preciso, depois de formado, defender publicamente várias teses escolhidas dentre as matérias estudadas na faculdade. Em um primeiro momento, essas argumentações serão apresentadas em congregação. Caso sejam aprovadas por todos os professores, serão analisadas pelo diretor e pelos “lentes” (que organizavam o currículo do curso). Somente com o aval deles é que o bacharel em Direito pode ser chamado de “doutor”.
Contudo, as faculdades de Direito do Brasil não promovem um exame nesses moldes.
Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2018, 17h00 - Site Conjur - A imagem da copa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet