Não é possível prever como será a interpretação jurídica
Opinião
Publicado em 24/01/2018

 

Por Bianor Arruda Bezerra Neto

No texto anterior, ao abordarmos a concepção tradicional de decisão judicial e o desafio do voluntarismo exposto por Kelsen, apresentamos, em linhas gerais, os principais grupos de correntes teóricas que se propuseram a pensar e a vencê-lo: justiça, argumentação e hermenêutica.

Nos próximos dois artigos, o objetivo é tratar do tema específico da hermenêutica jurídica, investigando acerca de sua influência sobre a decisão, bem como acerca de sua contribuição no combate ao voluntarismo judicial. Antes, porém, algumas reflexões sobre a interpretação e a linguagem humana. É o que tentaremos fazer neste texto. Iniciemos, pois, como de costume, fazendo perguntas.

Quais são os limites da interpretação jurídica e qual é o seu objeto? Até onde pode ir o juiz ao interpretar o texto da norma jurídica? O juiz descobre ou ele atribui/constrói sentido para os textos normativos que interpreta[i]?

A interpretação jurídica é um caso especial da interpretação em geral, de modo que, para analisar esta, primeiro, uma pequena incursão sobre aquela. Nos quatro exemplos que se seguem, são descritas situações que envolvem o ato de interpretar. (1) “João interpretou o mau humor de sua namorada Maria, para ele evidenciado pelo silêncio, o olhar tenso e a testa franzida, como o anúncio do fim da relação afetiva.” (2) “Maria disse: João, desculpe-me, mas não vou mais ao cinema, pois estou cansada e com dor de cabeça. Ele interpretou tais palavras como o anúncio do fim da relação afetiva.” (3) “No email de Maria estava escrito: João, você foi grosseiro com o professor. Não faça mais isso. Então, João interpretou aquele texto como o anúncio do fim da relação afetiva.” (4) “No bilhete deixado em cima da mesa por Maria, havia apenas uma frase: ‘L'amour brise les grilles et se rit des verrous.’ (Kean - Alexadre Dumas) Apesar de seu francês limitado, João não teve dúvida e interpretou aquela citação como o anúncio do fim da relação afetiva”.

A par dos exemplos acima, podem ser formuladas, ao menos, seis questões relevantes: a) qual é o objeto da interpretação? b) em que consiste o ato de interpretar? c) qual é o resultado da interpretação? d) quais as variáveis presentes no ato de interpretar? e) quais as condições de possibilidades para a realização do ato de interpretar? f) qual a finalidade da interpretação?

O ato de interpretar e o objeto da interpretação
No primeiro exemplo, o objeto da interpretação é a expressão corporal de Maria, no segundo, são as palavras proferidas por ela, no terceiro, um texto escrito e, no quarto exemplo, um texto escrito em língua estrangeira, extraído de uma peça teatral de Alexandre Dumas.

Estes, todavia, podem ser chamados apenas de objetos imediatos da interpretação, porque é aquilo que se apresenta de maneira mais evidente ao intérprete: a atitude, as palavras faladas e os textos.

Nos quatro exemplos, podemos também identificar objetos de interpretação não tão evidentes e que podemos chamar de objetos mediatos. Estes seriam todos os elementos que, de maneira direta ou indireta, compõem o objeto imediato da interpretação.

Por exemplo, na primeira situação, a expressão corporal está inserida no contexto da relação afetiva existente entre João e Maria e, especificamente, no contexto de algum acontecimento recente, o qual pode ter sido uma briga, uma discussão, estas, por sua vez, podem ter sido causadas por uma traição, ou mesmo, simplesmente, pelo desamor. Podem ainda ser considerados como objetos mediatos, ou seja, como elementos componentes do objeto imediato o humor de Maria ou o excesso de ciúme de João. Se quisermos ampliar o quadro de elementos componentes do objeto imediato da interpretação, podemos examinar os costumes da sociedade em que João e Maria vivem e que sejam relacionados ao objeto imediato da interpretação, dentre outra gama, talvez infinita, de elementos.

A mesma busca pelos diversos elementos que compõem o objeto imediato da interpretação também pode ser realizada nos outros três exemplos, sendo que, para cada grupo desses elementos, o intérprete terá que ter aptidão técnica ou experiência suficiente para identificá-los. Assim, somente um psicólogo pode, com alguma precisão, identificar eventuais causas patológicas para o mau humor de Maria, ou um antropólogo identificar padrões de comportamento em mulheres que desejem trocar de parceiro, e assim por diante.

Todavia, por mais que os objetos imediatos de interpretação, nos quatro casos, sejam diversos, por mais que os objetos mediatos ou elementos que compõem o objeto imediato sejam também diferentes e com grau de intensidade variável nessa composição, quando tratamos de interpretação, é possível identificar um aspecto comum em todos os quatro casos: todos eles estão expressos em algum de tipo de linguagem[ii].

Assim, no primeiro caso, o objeto imediato está expresso pela linguagem corporal, no segundo caso, ele está expresso pela linguagem falada, enquanto no terceiro e no quarto caso ele está expresso através de textos ou linguagem textual[iii].

Quanto aos objetos mediatos, a forma com que se expressam é também por meio da linguagem. Um costume, por exemplo, é fato aferível através da observação de comportamentos repetitivos que são expressos ou representados pelas manifestações éticas, culturais, religiosas, políticas, todas elas materializadas através de linguagens: corporal, ritual, textual etc.[iv]

Em tais termos, podemos dizer, então, que o ato de interpretar consiste no esforço ou atividade de, através da compreensão da linguagem, conferir algum sentido ao acontecimento que ela expressa. Interpretar, portanto, é compreender a linguagem através da qual um acontecimento se expressa e, a partir dessa compreensão, atribuir (construir) um sentido a ele, se isso for possível.

Quando essa atribuição de sentido é possível e ela ocorre, o acontecimento ou evento se converte em fato[v]. Todo fato é, assim, sempre produto da interpretação da linguagem na qual ele se expressa e que pode ser compreendida pelo intérprete.

A partir desse aspecto comum a todo objeto de interpretação, que é ser expresso através da linguagem, podemos extrair outra conclusão: toda linguagem pode ser vertida em texto composto pelo vernáculo ou por qualquer língua estrangeira[vi].

Os limites da interpretação e o seu resultado
O resultado do ato de interpretar é, portanto, a definição, pelo intérprete, do sentido que possui o objeto da interpretação.

Para concluir esse processo, o intérprete, obviamente, deve ser conhecedor da linguagem através da qual o objeto da interpretação se apresenta, do contrário a interpretação tenderá a ser falha, o que provocará definições de sentido falsas e/ou incompletas.

Se peço a um advogado que leia um texto científico que trate da “investigação da toxicidade da isotretinoína sobre a conjuntiva humana” e, em seguida, que realize uma análise da teoria da autora, bem como a explique a um auditório de médicos, essa tarefa, muito provavelmente, não será desempenhada de forma minimamente proveitosa para a plateia. O advogado não possui conhecimento da linguagem expressa através do texto em questão.

Seguindo essa trilha, os limites da interpretação estão exatamente nos limites da linguagem, tanto nos limites do meu conhecimento sobre ela, quanto nos limites do que ela própria pode expressar. Como disse Wittgenstein: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.”[vii]

Se nada entendo de vinhos, que representa para mim a rica “carta” de um bom restaurante? Se nada sei sobre a Revolução Francesa e, no Louvre, vejo a obra “La Liberté guidant le peuple”, de Eugène Delacroix, ela me parecerá apenas mais um “quadro bonito”, dentre tantos. Se iniciar a leitura do título da obra, mas não conhecer a língua francesa, logo desviarei o olhar. Se souber um pouco de francês, talvez pense tratar-se de uma obra que exalte a liberdade sexual ou o feminismo. Se não possuo qualquer noção acerca do mercado financeiro, como posso compreender a polêmica em torno da incidência do IOF sobre operações de crédito nas quais não participam bancos comerciais ou quaisquer instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional?

O resultado da interpretação é previsível?
Não, absolutamente. Se toda interpretação pressupõe uma linguagem que é seu objeto e, se toda linguagem pressupõe certa uniformidade de sentido, maior ou menor, por que razão a interpretação não é previsível?

A resposta é simples: não é previsível, porque, para interpretar, o sujeito opera a partir da compreensão da linguagem objeto e a compreensão pode ser impossível de ser prevista, porque não se sabe: a) quais objetos mediatos o intérprete levou em conta para compor o objeto imediato da interpretação;[viii] b) se ele tinha a capacidade intelectual e/ou cognitiva de compreender a linguagem objeto e as componentes levadas em conta por ele; c) se ele, consciente ou inconscientemente, violou o sentido compartilhado da linguagem interpretada, segundo sua conveniência.

A interpretação que João fez, nos quatro exemplos iniciais: a) pode ter levado em conta sinais anteriores do desamor de Maria; b) pode ter sido influenciada por distúrbios afetivos que ele possui e que o levam a ter complexo de rejeição; c) pode ter sido influenciada pelo seu desejo de terminar a relação, por estar apaixonado por outra pessoa; d) pode ser fruto do seu machismo, ao interpretar o mau humor de Maria ou suas palavras e textos; e) pode, simplesmente, ser decorrência da incapacidade dele de interpretar os sentimentos de Maria, estes manifestados por suas variadas formas de expressão.

Mesmo quando a interpretação envolve linguagem textual, a previsibilidade da interpretação é também improvável, em razão da infinita quantidade de variáveis constantes do processo de compreensão da linguagem[ix]: aspectos psicológicos, cognitivos, crenças, preconceitos, má-fé, deficiência técnica, quantidade de objetos mediatos levados em conta etc[x].

Quando inicia a biografia de Olga Benário, Fernando Morais escreve o seguinte: “A história que você vai ler agora relata fatos que aconteceram exatamente como estão descritos neste livro: a vida de Olga Benário Prestes, uma história que me fascina e atormenta desde a adolescência, quando ouvia um pai referir-se a Filinto Müller como o homem que tinha dado a Hitler, “de presente”, a mulher de Luís Carlos Prestes, uma judia comunista que estava grávida de sete meses.”[xi] (grifei)

Mais adiante, prossegue o autor: “Embora a ameaça de expulsão fosse cada vez mais iminente, uma ponta de esperança permitia que Olga sonhasse ter seu filho no Brasil: apesar do estado de sítio que acabava de ser renovado, apesar do clima de anticomunismo e de hostilidade renovado aos judeus que se disseminava no Brasil, apesar da indisfarçada simpatia que o governo Vargas manifestava pelo nazismo na Alemanha, a Constituição brasileira, que continuava em vigor, garantia às mulheres que estivessem esperando filhos de pais brasileiros o direito de tê-los no país.”[xii]

O ano era 1936 e a Constituição em vigor era a de 1934. Quem lê a passagem e conhece o Direito Constitucional brasileiro, sabe não ser correta a referência do autor à Constituição, pois não havia, à época, norma jurídica, constitucional ou não, que dispusesse nesse sentido[xiii]. Logo, na linguagem textual, o sentido do termo Constituição foi mal posto pelo autor e isso fará com que a interpretação dele seja falha. Quem não tem formação jurídica, mas um bom nível cultural, provavelmente, compreenderá a linguagem do autor no sentido de que houve o mais alto grau de ilegalidade por parte do Governo brasileiro. Quem tenha formação em política, talvez até concorde com a expulsão de Olga, estrangeira que, clandestinamente, veio ao Brasil para tentar derrubar um Governo constitucionalmente legítimo, Governo este que, se não fora eleito diretamente pelo povo, mas o fora por colégio eleitoral, tinha o apoio do Congresso Nacional e não era rejeitado pelo povo brasileiro.

E assim, tantas interpretações diversas serão feitas, pois a compreensão da linguagem não é passível de controle, como acima demonstrado, o que leva a interpretações variadíssimas de textos literários, sejam eles supostamente baseados em fatos reais, ou não. Por exemplo: será que os demais leitores do Amor nos Tempos do Cólera, de Garcia Marquez, acharam Fermina Daza tão bela e boba quanto eu? Será que alguém interpretou, como eu, o amor de Florentino Ariza por ela como fruto de uma atitude patológica? Lady MacBeth enlouqueceu ou se suicidou por remorso?


i CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses: 2012, pp. 191 e 197.

ii STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp. 175/180.

iii CARVALHO, Paulo de Barros. Ibidem, pp. 189/192.

iv Em vez de “objeto imediato e mediato”, o professor Paulo de Barros Carvalho fala em “intertextualidade”, enquanto o professor Lenio Streck aborda o tema a partir da “diferença ontológica” e do “dasein” de matriz heideggeriana, bem como das ideias de “círculo hermenêutico” e “pré-compreensão”.

v TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p. 32.

vi CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito. São Paulo: Noeses, 2014, p. 100.

vii WITTGENSTEIN, Ludwig. “Tractatus Logico-Philosophicus”. New York: Barne & Nobles, p. 121. (“The limits of my language mean the limits of my world”.)

viii Na linguagem de Paulo de Barros Carvalho: não se sabe a extensão da intertextualidade considerada e possível.

ix Sobre as ideias de “círculo hermenêutico”, “horizonte interpretativo” e “pré-compreensão”, cf. a obra Hermenêutica Jurídica em Crise, já referida, de autoria do professor Lenio Streck, a qual possui sua matriz na hermenêutica filosófica de Heidegger e Gadamer.

x CARVALHO, Paulo de Barros. Ibidem, pp. 180/204.

xi MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.

xii Idem. Ibidem.

xiii Segundo Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento, em seu Manual de Direito Internacional Privado, pp. 336/338, somente com a Constituição de 1946 (art. 129, I e II), apareceu norma proibitiva da expulsão de estrangeiro que possuísse filho brasileiro, tema que não voltou a ser tratado na Constituição de 1967, nem na Constituição de 1988. No plano infraconstitucional, a norma apareceu no DL n.º 417/69. A norma atualmente em vigor, a Lei n.º 6.815/80, dispõe sobre a proibição em comento no seu artigo 75. A expulsão de Olga Benário ocorreu em outubro de 1936, após o habeas corpus impetrado em seu favor ter sido rejeitado pelo STF, no dia 17 de junho de 1936. Não havia, contudo, uma situação de completa anomia sobre o tema da expulsão, uma vez que o Brasil era signatário da Convenção de Havana de 1928.

 

 é juiz federal na 5ª Região, doutor pela PUC/SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

 

Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2018, 7h05 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet

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