Estado não pode interferir no código particular de cada casal
Opinião
Publicado em 04/12/2017

 

 

Por Rodrigo da Cunha Pereira

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicou, no dia 9 de setembro, significativo e paradigmático acórdão sobre caracterização, ou não, de união estável, que nos remete a pensar na importante dicotomia entre público e privado.

Trata-se da Apelação 0026473.20108.24.0023, de relatoria do desembargador Jorge Luis Costa Beber, e já noticiado pelo boletim eletrônico do IBDFam 509. A história do casal, submetida ao referido julgamento, é de uma relação amorosa de dois homens, por cerca de dez anos.

Ao final do relacionamento, uma das partes dizia que era apenas namoro e, portanto, daí não decorreria nenhum direito; a outra parte sustentava que era união estável e, portanto, que deveriam ser partilhados os bens adquiridos na constância da união a título oneroso. O TJ-SC entendeu que se tratava de união estável.

A discussão central já é lugar-comum e faz parte da maioria dos processos judiciais envolvendo união estável, ou seja, qual a diferença entre namoro e união estável? Assim como na parentalidade socioafetiva há uma linha tênue entre paternidade/maternidade socioafetiva e padrasto/madrasta, no namoro essa distinção tem sido cada vez mais difícil. É que namorados, às vezes, têm filhos sem planejar, moram juntos para dividir despesas e só querem continuar namorando sem constituírem uma família conjugal. E é nesta linha tênue que mora o perigo.

A particularidade do caso relatado pelo referido acórdão atinge milhares de outros casais hétero ou homoafetivos, seja no casamento ou na união estável, e advém do fato de terem mantido relações extraconjugais e se isso, por si só, anularia ou inviabilizaria a conjugalidade, ou melhor, se pode descaracterizar a união estável. In casu, eles tinham uma relação aberta, o que significava que era permitido entre eles terem outras relações para além do núcleo central daquela união estável. Consentida ou não, as relações extraconjugais não podem ter a força de descaracterizar um núcleo familiar. Se assim fosse, família constituída pelo casamento deixaria de sê-la se o casal tivesse relações extraconjugais, ou a prática de swing, por exemplo.

A questão que verdadeiramente interessa aqui, e que o acórdão nos põe a refletir, é se o Estado pode interferir no código particular de cada casal. Quem deve ditar as regras e economia do desejo de cada casal é o próprio casal. Na esfera da intimidade da conjugalidade, só, e somente só, o casal é que deve decidir sobre suas práticas sexuais. Se cabe mais de uma pessoa na relação, se querem ou não fazer sexo apenas para reprodução, ou apenas recreativo, é uma decisão do casal. Fora disso, é moralismo perverso e contraditório.

Por exemplo, algumas religiões só permitem sexo no casamento, e mesmo assim apenas para reprodução. E se o casal optar por não ter filho, não pode casar? Todas essas questões da sexualidade transitam por um terreno perigoso e movediço, e muitas vezes estão a serviço de uma moral estigmatizante e de uma relação de dominação e de poder. E o Direito existe e deve estar a serviço não apenas da paz social e da pacificação dos conflitos, mas também da preservação e respeito aos direitos do sujeito de desejo.

A palavra de ordem da Constituição da República, a dignidade da pessoa, perde todo o seu sentido se não houver respeito ao sujeito desejante e à sua singularidade. Obviamente que os limites ao desejo são necessários quando ele ultrapassa os limites do outro e desrespeita terceiros e pessoas vulneráveis. Somente nesses casos o Estado deveria intervir. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre esse assunto: a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a dois.

No que andou bem a nossa Lei Maior, ajuízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração “é terra que ninguém nunca pisou”. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o ordenamento Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. (RE 595.609, relator ministro Ayres Britto, julgado em 9/4/2012, publicado em DJe-076 de 18/4/2012.

Fidelidade e lealdade são valores que a doutrina vem tentando diferenciar, e o acórdão o fez muito bem: a tolerância à infidelidade, portanto, é critério do casal, e o conservadorismo do julgador, sua formação sob os influxos da família monogâmica, seus preceitos com novas formas de relações baseadas no afeto, na união de propósitos, não podem impregnar a decisão judicial que envolva um modelo não ortodoxo de união quando essa sistemática é aceita com naturalidade entre os conviventes, que satisfazem, à exaustão, todos os demais requisitos de uma sociedade homoafetiva de fato (trecho do acórdão do TJ-SC, rel. Jorge Beber).

O conceito de família não pode ser descaracterizado se determinado núcleo familiar foge dos padrões ortodoxos. A dignidade da pessoa pressupõe a compreensão e o respeito ao seu desejo, inclusive o de constituir uma família fora dos padrões convencionais. Essa é a hermenêutica constitucional atual balizada pelo Supremo Tribunal Federal ao dizer que a realidade familiar não pode ser reduzida a modelos pré-concebidos (julgado 898.060 – min. Luis Fux). Em outras palavras, as formas de amar e constituir família, fora aos padrões tradicionais, não pode significar exclusão, desamparo e invisibilidade jurídica.

A ideia do amor romântico, da alma gêmea, não é mais um ideal seguido por todos. Há quem prefira outras formas e possibilidades. Desde que Freud revelou ao mundo a existência do inconsciente e do desejo, a sexualidade passou a ser vista e trilhada sob espectros bem mais amplos do que pode imaginar nossa vã filosofia. E o Estado não pode proibir ou se intrometer na intimidade do desejo do casal. Deve apenas atribuir responsabilidade àqueles que escolhem seguir caminhos diferentes dos já estabelecidos em lei.

 

Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

 

Revista Consultor Jurídico, 3 de dezembro de 2017, 8h00 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet

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