23 de novembro de 2018, 15h37
Por Daniel Gerber
Assim como em praticamente todas as ciências exatas e humanas, o Direito traz em si um “local” onde suas normas se tornam indefinidas e cobertas necessariamente pela névoa da interpretação ideológica.
Na esfera penal, a bruma se torna particularmente espessa sempre que um determinado comportamento individual e devidamente previsto em lei — ou seja, um crime — é praticado em situações de conflito social aparente.
Um exemplo é o de uma invasão de propriedade em duas situações distintas. Na primeira, suponha-se que um indivíduo entre em uma propriedade portando arma. Neste caso, o proprietário tem o direito de defender a si e a família mediante resposta armada, uma vez que estão presentes os requisitos da legítima defesa. Afinal, trata-se de uma ameaça de um possível criminoso que atentará vida de um cidadão e seus familiares.
Aqui, a legítima defesa se dá pela figura da agressão injusta iminente — neste caso, não é necessário esperar que o criminoso atire primeiro — que pode ser rechaçada com o uso moderado dos meios necessários, inclusive pelo disparo de armas de fogo.
Numa segunda situação, vamos supor que, em vez de um invasor armado, haja centenas deles (todos com armas) empunhando a bandeira de um movimento social de sem terra ou sem teto. Tem-se, agora, a figura do conflito social.
No entanto as invasões, por uma hermenêutica contaminada pelas brumas da ideologia, deixa de ser “crime” e a resposta armada passa a ser uma opção não recomendada, sob pena de se ter descaracterizada a legítima defesa.
É necessário suscitar esta comparação — e aqui não se quer o incentivo a reações armadas de qualquer natureza por cidadãos comuns — para ilustrar recente polêmica acerca do uso de atiradores de elite em ações policiais no Rio de Janeiro contra narcotraficantes portadores de fuzis.
O que se percebe agora é que volta à tona esta discussão que diferencia o conflito social da agressão injusta e que serve de parâmetro para os limites da legítima defesa. Assim que tal medida foi anunciada pelo governador eleito do Rio, os defensores dos direitos humanos imediatamente bradaram tratar-se de assassinato não justificado e, por isso, proibido.
Será?
Posições políticas à parte, o fato é que, à luz das ciências jurídicas, o uso de snipers está respaldado na clássica figura da legítima defesa de terceiros, quando qualquer cidadão ou policiais agem para preservar a vida de outras pessoas.
Tal se dá porque o porte de um fuzil é algo que fala por si só no que toca ao preenchimento do requisito “agressão injusta e iminente”. E aqui quero respeitosamente contrapor os argumentos do nobre colega José Carlos Porciúncula, publicados em artigo recente na ConJur.
Qualquer leigo pode perceber que seria inviável imaginarmos um fuzil para algo que não seja uma agressão letal. Igualmente incabível é acreditar que o porte de arma de tamanho potencial destrutivo (e cujo uso configura crime por si só) não seja visto como uma tragédia iminente para os terceiros que poderão ser alvo de quem o porta.
Ora, se tais requisitos estão presentes, resta óbvia a conclusão de que seu portador não vai se render à um “pedido” policial. Portanto, abater quem está preparado para também matar terceiros, como muitos dos inocentes mortos no Rio por balas perdidas, nada mais é do que legítima defesa com uso do meio técnico necessário. É um diagnóstico duro e que foge à comodidade do politicamente correto, mas que justifica o uso do monopólio da força por agentes do Estado para proteger a sociedade.
Entender de forma diversa, como alguns fazem ideologicamente, significa obrigar o policial a um enfrentamento por meio de medidas de invasão e confronto bélico. Quando isso acontece, aumenta o risco de que haja profundo dano a todos aqueles que estão no local do embate — inclusive terceiros, como moradores que nada têm a ver como o narcotráfico.
Não se deve defender, contudo, que haja autorização para matar por prevenção. Isso, em hipótese alguma, deve ser aceito. O eventual uso de snipers, se adotado, tem que estar embasado por mecanismos atestem a necessidade de seu uso, como filmagens indicando a necessidade da ação.
Mas esta não é a discussão aqui. O que está em análise é o quanto de carga ideológica há em avaliações que atentam contra o óbvio fato de que, contra um indivíduo portando fuzil, não existe solução pacífica.
Antes que me ataquem, friso que esta análise está imune a inclinações ideológicas. Sou contra a pena de morte, redução da maioridade penal, punição por porte de drogas, tiros em quem foge de blitz e ao hiperencarceramento. Nem por isso, entretanto, deve-se deixar de analisar friamente as situações que o dia a dia nos traz. Nesse espectro, não consigo enquadrar o tiro do policial contra um portador de fuzil como homicídio. É preciso, neste caso, não se deixar cegar pelas névoas da ideologia e caminhar pela senda do bom senso.
Daniel Gerber é advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processual Penal.
Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2018, 15h37/Site Conjur
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