Como é de notório conhecimento, seja no meio jurídico ou fora dele, em meados do ano de 2007, O Governo do Estado de Minas Gerais – na época liderado pelo então Governador, Sr. Aécio Neves – editara a famigerada Lei Complementar nº 100/07, a qual tinha como objetivo principal efetivar centenas de funcionários do Estado sem a realização de concurso público. Basicamente a referida lei desconsiderava os princípios contidos no art. 37 da Constituição Federal, e, na tentativa de regularizar uma situação que já perdurava há décadas, criou o seu próprio requisito de efetivação,transformando em efetivos mais de 98 mil servidores sem que houvessem feito concurso público. A pergunta é: Mas isso é juridicamente admissível? Não, não é, aliás, isso é extrapolação constitucional, eu diria!
Ademais, o cidadão comum, que não é expert em principiologia constitucional e administrativa, logicamente dotado do desejo de trabalhar, quando encontrou a oportunidade, certamente a abraçou, afinal, quem não o teria feito que lance a primeira inconstitucionalidade. No Brasil de indiferenças, no país do desemprego, quem tem meia–jornada é rei, quiçá um ofício público.
Nessa época eu cursava o 9ª período de Direito, e me lembro bem de um professor de Direito Constitucional dizer: '(...) Isso ainda vai feder...'. Bem, o final da história todos já devem conhecer, não deu outra: O STF bateu o martelo, declarou inconstitucional a referida norma, o que tornou sem efeito todos os contratos mantidos com base no citado imperativo legal. Resultado, uma dispensa em massa, e uma confusão trabalhista e previdenciária sem precedentes no funcionalismo público de Minas.
Após isso, muitos servidores | por meio do Sindicato de Classe | ingressaram judicialmente pleiteando alguns direitos decorrentes dessa anulação, e a primeira resposta do judiciário – no popular – foi: 'colega, em qualquer Botequim de esquina todo mundo sabe que precisa fazer concurso, saca? De boa, essa história de boa fé não vai colar!'
Bem, até entendo o que o Judiciário quis dizer, todavia, penso que no caso em foco, se aplica indiscutivelmente a Teoria da Aparência, a qual impõe que quando uma situação de fato é capaz de levar a engano um homem médio, fazendo–o crer estar diante de uma situação legalmente possível, tal conduta deve ser tida como de boa fé, vez que motiva–se na aparência de legitimidade que o contexto lhe apresenta. Vale lembrar que o conceito de 'aparência legítima' deve ser relativizado quando falamos do 'homem médio' na matéria atinente.
Observe que, não se questiona que a lei seja inconstitucional ou não, inclusive corroboramos com a decisão do STF, muito acertada por sinal, quando dispõe que a referida norma é eivada de vício. O que questionamos é: não se pode negar os direitos dos trabalhadores que, já despenderam sua força de trabalho em favor do Estado, já sofreram – social e economicamente – com essa declaração, de modo que não se pode mais devolver a eles esse dispêndio laboral já usufruído pelo Estado, e se assim o admitíssemos estaríamos a incentivar o enriquecimento ilícito com mão de obra irregular em proveito do Governo, portanto, devem ser ressarcidos naquilo que dispõe a lei quanto ao recolhimento dos saldos fundiários.
O que se ventila é que, apesar de ser inconstitucional, obedeceu todo um processo legislativo, adveio de um Governo legítimo, e portanto, em face do homem médio, tinha aspecto e aparência de legalidade, não se podendo exigir que os envolvidos – imperitos na área jurídica – questionassem a legitimidade dessa norma, de modo a lhes negar os direitos oriundos de sua declaração de nulidade. É inquestionável que uma declaração vinda de uma autoridade no assunto traz legitimidade perante os seus destinatários. O que dizer então de uma Declaração emanada de um Governo legítimo, dotado do poder de império, obediente a todo um processo legislativo, com aprovação parlamentar, análise de comissão jurídica, e sanção do Chefe deste Poder?
No caso da Lei Complementar nº 100 de 2007, temos uma “Lei editada por um Governo Legitimamente eleito”, o qual dispõe “isso é legal”, e mais, tanto o é que “fora publicado em Diário Oficial”, o que demonstra a certeza que temos a respeito disso. Observe: não é nada informal, é algo legal, obediente a todo um processo legislativo “formal”, exaurindo todas as suas etapas. Não foi um ato individual e insano, mas um ato expressamente editado, visto e revisto, avaliado por uma equipe jurídica, votado, aprovado, e sancionado, e que passou por pelo menos 25 (vinte e cinco)sessões até a sua promulgação. De outro lado, temos pessoas em situação de desamparo econômico precisando trabalhar, que lançaram mão de sua força de trabalho em prol desse Governo, e que são tecnicamente incapazes de criar qualquer sustentação legal para refutar um mandamento advindo de um Poder Público dotado de jus imperis e capacidade legiferante.
Sobre a Teoria da Aparência, o saudoso Orlando Gomes, bem defende:
“Entende-se, em suma, que em todas essas situações aparentes devem os terceiros merecer proteção,exigindo-se, apenas, que seu erro, corno frisa Calaís-Auloy, provenha de circunstâncias tais que teriam podido enganar o indivíduo medido. A aparência, em tais casos, substitui a realidade (...)” (grifo nosso).
No mesmo sentido, o Desembargador Arnaldo Rizzardo disserta que:
“Quem procedeu de boa fé, levado pela aparência de uma situação de estado, deve ter assegurada a proteção de sua aquisição”.
Não podemos concluir noutro sentido senão naquele que aponta para a seguinte tese: Se as circunstâncias de fato e de direito são aptas a enganar o indivíduo médio, tendo o condão de levá–lo a crer que se está diante de uma situação legítima e legalmente amparada, a aparência substitui a realidade, e, portanto, está amparado pela “Teoria da Aparência”, agindo inquestionavelmente de boa fé.
Ocorre que, como já dito no início do texto, a referida lei fora declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e todos os contratos foram tidos como “nulos” - em suma:inválidos desde o primeiro dia de sua vigência. Por conseguinte, aqueles que não tinham completado período para aposentadoria ou não haviam passado em concurso posteriormente à lei foram cabalmente exonerados, e, diga-se de passagem, com uma mão na frente e outra atrás.
O Ministério Público do Trabalho, por sua vez, por meio dos seus Auditores, apresentou cerca de 38 notificações à Advocacia-Geral do Estado | AGE. A finalidade das notificações não visa requerer a manutenção dos contratos, pois fique bem claro, esse ponto já é indiscutível face a Decisão da Suprema Corte, portanto, os contratos são nulos pois baseados em uma lei inconstitucional que violara o princípio do concurso público, e, por isso, não podem subsistir.
O que o MPT exige é que, os direitos fundiários desse trabalhadores sejam quitados, o que representaria um débito de milhões de reais tendo como sujeito passivo o próprio Estado. O Governo, por sua vez, recorrera administrativamente da autuação. O argumento do Estado Mineiro é que, o STF teria entendido que a decisão só deve gerar efeitos a partir de dezembro de 2015, quando os efetivados pela Lei 100 – maioria composta de profissionais da Educação – saíram dos cargos. Assim, se nega a cumprir qualquer obrigação decorrente desses 'contratos fantasmas', os quais 'existiram já mortos desde o início'. A esse tipo de contrato inclusive, costumo chamar de pacto natimorto, vez que já nasce sem vida.
Por sua vez, o Sindicato dos Servidores de Minas Gerais ingressou com uma Ação Judicial questionando o narrado.Todavia, O poder judiciário Mineiro, numa decisão da 2ª Vara de Fazenda Pública Estadual e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte julgou improcedente a ação apresentada pelo Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação em Minas Gerais | Sind-Ute, entendendo que o regime de contratação sobre os efetivados está no artigo 37 da Constituição, que reza sobre a necessidade de realização de concurso público. A decisão indeferiu o pedido, e, dentre outras coisas, defendeu que:
“Qualquer leigo (...) tem plena ciência que, para ingressar no serviço público tem que se prestar concurso público.Assim, o designado não pode alegar que estava de boa-fé e que desconhecia a inconstitucionalidade do vínculo administrativo”
Apesar de o entendimento da Corte Mineira ter sido desfavorável aos servidores – entendemos tratar–se de fundamentação absolutamente 'contra legem', contestável e equivocada, pautada meramente em questões políticas, vez que, a essa altura trágica da lama degradativa que assolou a economia brasileira, autorizar um precedente judicial nesse sentido seria gerar uma despesa muito grande para o referido Estado que, como é notório, também não anda muito bem das pernas.
Ademais, do mesmo modo que não cabe ao particular deixar de pagar a conta da mercearia ou do IPVA por ter estourado o limite do cartão de crédito, não cabe ao Estado deixar de cumprir suas obrigações porque gastou demais com o que não devia ou ficar se apoiando em qualquer outra justificativa infundada.
Nesta linha, defendemos que quando um contrato de trabalho é declarado nulo os seus efeitos financeiros correm desde o início, de forma retroativa, isso porque o tomador da mão de obra humana já se valeu do suor e da força laboral deste trabalhador, e a alegação da própria torpeza para se esquivar dessas obrigações contratuais, soa como incentivadora do enriquecimento ilícito às custas da força braçal do trabalhador, entendimento este que recentemente também encontrou guarida no RE 705140 | STF.
Nossa sustentação toma como base a Lei 8.036/90, que trata do FGTS. O artigo 19 da legislação diz que “é devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo”. Na dita hipótese já está prevista a não realização de concurso público para a investidura no cargo. Excepcionalizamos aqui os 'cargos em comissão' haja vista tratarem-se de espécie de cargo de confiança – clausula ad nutum – onde não há a possibilidade de declaração de nulidade pelas razões expostas, vez a previsão de livre nomeação e exoneração, sem necessidade de obediência aos princípios ventilados, conforme já decidido no RR 72000-66.2009.5.15.0025.
Por concluir, com base nesse entendimento, não só deve o Sindicato respectivo recorrer da Decisão levando a discussão até a última instância – se preciso for – assim como cada trabalhador também pode cobrar individualmente suas parcelas fundiárias na Justiça, no que entendemos que, ainda que haja derrota na primeira instância, as chances de êxito nas instâncias superiores são notórias e muito palpáveis. Para isso, é importante que os interessados procurem um profissional de sua confiança, dotado do conhecimento atinente à área e de todas as ferramentas processuais para sustentar uma boa tese em juízo, bem defendendo os seus interesses.
REFERÊNCIAS:
Orlando Gomes, in Transformações Gerais do Direito das Obrigações, Ver. Dos Tribs. São Paulo, 1967, p.96.
IORIO, Luiz Carlos da Cruz. A Análise técnico-jurídico da Teoria da Aparência como princípio de direito. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 14 fev. 2012. Disponivel em:. Acesso em: 24 jun. 2016.
Advocacia Geral do estado de Minas Gerais. Notícia: É improcedente o pagamento de FGTS a professores efetivados pela Lei 100. Disponível em:http://www.advocaciageral.mg.gov.br/comunicacao/banco-de-noticias/2328eimprocedenteopagamento-de.... Acesso em: 24 de Junho de 2016.
Conjur. Empregado que ocupa cargo em comissão tem direito a depósitos do FGTS. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2014-out-14/empregado-ocupa-cargo-comissao-direito-fgts. Acesso em: 24 de Junho de 2016.
Vicente Ráo. O Direito e a Vida Dos direitos, II/109, Tomo. Ed. Resenha Universitária, São Paulo, 1978, 2ª ed.
Especialista em Direito Administrativo | Concursos | e Consumidor
Advogado e Consultor Jurídico Especialista nas áreas do Direito Administrativo | Concursos Públicos | e do Consumidor. | Atuou em funções como Chefe de Seção Especializada em Autarquia Federal | Núcleo de Defesa do Estado da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce. Autor de artigos Jurídicos em periódicos de renome, os últimos nas Revistas RT - Revista dos Tribunais, GOVERNET - especializada em Administração Pública, Zênite, Conteúdo Jurídico, Jus Navigandi | etc.
Publicado por | Maykell Felipe Moreira – 26/06/2016 - Por Maykell Felipe Moreira