Três anos após surto, mulheres buscam apoio e respostas
Uma sucessão de abandonos e incertezas. Assim é descrita por pesquisadores a realidade de milhares de mães de bebês que nasceram com microcefalia e outras sequelas devido à infecção pelo Zika vírus. Depois de três anos de o Ministério da Saúde declarar estado de emergência nacional para a epidemia do zika, essas mulheres ainda enfrentam rotina desgastante e solitária para cuidar dos filhos e buscar soluções para a doença.
Os dados mostram que a maioria das mães é pobre e negra, com pouca ou nenhuma escolaridade. De acordo com os pesquisadores, as mulheres afetadas pelo primeiro surto se sentem esquecidas pela mídia, academia e pelo Poder Público. Segundo os especialistas, elas acompanham o crescimento dos filhos sob expectativa e dúvidas.
Bebê com microcefalia
Bebê com microcefalia - Sumaia Villela/Agência Brasil
A pergunta que permanece para essas mães é se serão curadas as sequelas físicas e emocionais nos filhos que elas geraram e acompanham.
Relatos
Moradora de São Lourenço da Mata, área metropolitana do Recife (PE), Ana Carla Bernardo, 26 anos, teve sua rotina alterada pela epidemia há três anos. O nascimento de sua filha, Elizabeth, marcou o início de uma nova fase, cheia de percalços e descobertas.
Diagnosticada com a síndrome, a criança nasceu com baixa visão e passou por algumas crises convulsivas. Dedicada integralmente aos cuidados da filha, Ana Carla disse que a única melhora que percebeu no atendimento foi o acesso à fisioterapia, antes restrita a poucas crianças.
“Ela era muito molinha, ela está bem melhor agora, mais esperta. Mas, ainda há muitas coisas pela frente. Ela ainda não anda, não fica muito tempo sentadinha só. Já está no terceiro óculos, está melhorando, evoluindo”, relatou Ana Carla Bernardo à Agência Brasil.
Apesar da melhora, as convulsões afetaram o sistema locomotor de Elizabeth, que acabou desenvolvendo uma luxação no quadril. A menina será submetida a uma cirurgia para resolver o problema.
Desde 2015, o Ministério da Saúde confirmou mais de 2,8 mil casos de crianças infectadas pelo vírus. Desse total, 70% receberam algum tipo de cuidado e apenas três em cada 10 crianças recebem três tipos de serviço (puericultura, estimulação precoce e atenção especializada).
Micro-histórias
Parte das histórias de medo e expectativa de outras mulheres que estão passando por essa mesma realidade está em um estudo de antropólogas da Universidade de Brasília (UnB).
O objetivo do projeto, intitulado “Zika e microcefalia: um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”, é dar visibilidade à trajetória vivida pelas mães e apresentar a epidemia e seus impactos a partir de uma abordagem antropológica.
O grupo é formado por nove pesquisadoras que desenvolvem um trabalho de acompanhamento de algumas mães no Recife (PE), cidade onde foi registrado o maior número de casos de microcefalia no país.
O projeto teve início logo após o impacto das primeiras notícias da epidemia, em 2016, e ainda está em fase de campo. A cada seis meses, a equipe de antropólogas viaja para Pernambuco e passa alguns dias acompanhando mães em várias atividades do cotidiano.
Os relatos sobre as observações feitas nos últimos anos são apresentados em textos narrativos publicados no blog “Microhistórias”.
Análises
Recife - A fisioterapeuta Cynthia Ximenes da Associação de Assistência à Criança Deficiente atende bebês com microcefalia e orienta as mães sobre como fazer os exercícios em casa para melhorar o desenvolvimento das crianças (Sumaia Villela)
Fisioterapeuta atende bebês com microcefalia e orienta mãee - Sumaia Villela/Arquivo Agência Brasil
A professora Soraya Fleischer, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) , que coordena a pesquisa, disse que a metodologia utilizada para acompanhar as mesmas mulheres ao longo de um tempo permite observar a experiência vivida pelas mães e seus bebês e como elas reagem às novas demandas que surgem ao longo do crescimento da criança.
Também é observada a relação criada entre mães e profissionais que cuidam de seus filhos, como fisioterapeutas, fonoaudiólogas, oftalmologistas, entre outros.
“A cada seis meses que essas crianças vão galgando na vida, apresentam dificuldades diferentes. No início, tinham muita irritabilidade, dificuldade de dormir, aí elas foram medicadas com tranquilizantes. Depois, começaram a apresentar crises neurológicas e espasmódicas, convulsões muito fortes, aí foram medicadas com remédios anticonvulsivantes”, observou Soraya Fleisher.
Segundo a pesquisadora, algumas crianças foram alimentadas por sondas nasais e gástricas, outras apresentam dificuldades locomotoras e sofrem com alterações nos tendões e nos ossos do quadril, além de problemas na visão.
“Nessa última viagem, várias [crianças] estavam fazendo operações de estrabismo, outras têm colocado botox para ajudar a soltar a musculatura e poder ter um desempenho maior na fisioterapia”, acrescentou Fleisher.
Novos desafios
De acordo com o levantamento, as mães relatam dificuldades em incluir os filhos com deficiência na rede pública de ensino. Ana Carla procura uma escolinha para Elizabeth, mas ainda não encontrou nenhuma que tivesse condições de receber a filha.
“Quando a gente vai procurar, o pessoal [das escolas] não sabe nem o que falar porque não tem uma professora e um ajudante de classe para ficar com nossos filhos”, afirmou Ana Carla Bernardo, mãe da Elizabeth.
Há ainda o desafio da locomoção das mães e das crianças pela cidade até os locais das terapias de reabilitação. Algumas prefeituras disponibilizam transporte, mas há situações em que as mães enfrentam preconceito e despreparo de motoristas e dos passageiros.
Um dos episódios que deverão ser incluídos no estudo mostra a situação em que um motorista de aplicativo questiona as pesquisadoras se havia crianças com elas, caso contrário não aceitaria a corrida devido à necessidade de montar uma cadeirinha e ter mais espaço no carro.
Outro motorista abandonou a pesquisadora que estava acompanhada de uma mãe e uma criança com deficiência. “Ih, menina, isso aí eu já passei foi muito, visse”, reagiu a mãe, segundo relato da pesquisadora.
Saúde mental
“Dizem que Jade é uma mulher nervosa. Ela nem sempre foi vista assim, na verdade. Com as durezas da vida, aprendeu a engrossar sua voz: percebeu que se fosse muito calma e não se fizesse presente, ninguém cederia o lugar para ela e sua filha mais nova, Maitê - nascida com a Síndrome Congênita do Zika Vírus”.
Assim começa outra micro-história inédita, que destaca mais um problema: a vulnerabilidade da saúde mental dessas mulheres diante de situações estressantes do cotidiano, como serem maltratadas no transporte público ou não darem conta das inúmeras obrigações domésticas e familiares.
Aos poucos, a sobrecarga de trabalho e de tantas dúvidas imposta às mulheres resultou em sinais de cansaço, estresse, ansiedade e depressão. As pesquisas mostram que a saúde mental dessas mulheres foi diretamente afetada e os cuidados ainda são focados somente nas crianças.
“Quando perguntamos sobre como estava sua vida, ela [a mãe] respondeu com uma frase muito forte e ao mesmo sintética do que venho aqui discutindo: “O psicológico é que fica pior”, diz outro trecho escrito pela pesquisadora.
Edição: Renata Giraldi e Graça Adjuto
Publicado em 25/11/2018 - 13:18
Por Débora Brito - Repórter da Agência Brasil Brasília/Site EBC
A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet/Google