Conceder função de quarta instância a órgãos internacionais é visão equivocada
Opinião
Publicado em 13/09/2018

 

13 de setembro de 2018, 6h17

 

Por Saulo Stefanone Alle

 

Neste momento em que a democracia é desafiada, com os grupos de opinião que procuram estabelecer sua superioridade, o recurso à autoridade internacional tem se tornado frequente. As manifestações emitidas por organismos internacionais sobre decisões adotadas no Brasil sugerem um paradoxo: há instituições que sempre foram reconhecidas pela proteção aos direitos humanos em um mundo sabidamente cruel, mas agora elas pretendem interferir em nossas decisões democráticas.

 

O sistema internacional de proteção aos direitos humanos é necessário e trouxe resultados importantes para a humanidade, mas isso qualifica esses atores externos a rever ou determinar as decisões de tribunais brasileiros?

 

A questão não é nova e muito já foi escrito e debatido sobre esse assunto. Há uma corrente entusiasmada com a ideia de uniformização normativa e conceitual dos sistemas nacionais, sob uma suposta superioridade do sistema internacional. Essa tendência mostra-se não apenas inalcançável como também arriscada, em especial para os Estados menos ricos e influentes. Mesmo a ideia de transferir o poder jurisdicional para a esfera internacional, outorgando aos tribunais internacionais a função de quarta instância, é uma visão equivocada e não desejada pelos sistemas internacionais.

 

Por outro lado, uma postura calcada na clássica concepção de soberania, puramente voluntarista e fechada ao diálogo internacional, inviabiliza a cooperação e a construção de uma sociedade internacional saudável. Não há desenvolvimento possível sem relação com o restante do mundo. Essa relação exige diálogo e convivência harmônica. Além disso, mesmo a regra da maioria necessita de correções, e o referencial crítico internacional já demonstrou sua eficiência nesse campo.

 

Há, então, um meio-termo desejável: nem um fechamento completo na ordem interna nem uma submissão absoluta a padrões e conceitos determinados por agentes externos ou internacionais. A solução que os internacionalistas têm proposto é a do engajamento em um diálogo no cenário internacional. O Direito Internacional e Comparado tem o papel de fornecer novos parâmetros para a aplicação do Direito, e de criar um ônus argumentativo interessante para o desenvolvimento e fortalecimento dos tribunais, das instituições internas e dos direitos humanos.

 

Nesse contexto, há duas relações básicas que o Brasil estabelece em âmbito internacional. A primeira com os órgãos ao qual está vinculado, e dos quais se obrigou a observar as decisões. Nesses casos, o teor das decisões deve ser obedecido e só deve ser confrontado nas instâncias internacionais próprias, como é o caso do Tribunal Penal Internacional e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Paralelamente, a segunda relação é aquela mantida com os demais organismos internacionais não vinculantes. Mesmo as manifestações desses órgãos internacionais a que o Brasil não esteja vinculado, e cujas decisões não tenha se obrigado a observar, devem ser respeitadas e tratadas dialeticamente em seus processos decisórios internos.

 

No entanto, se por um lado é importante que o Estado brasileiro respeite — que é diferente de obedecer — as manifestações dos organismos internacionais não vinculantes, o oposto também é verdadeiro. Os órgãos e tribunais internacionais, todos eles, devem zelar especialmente pelo conteúdo e, sobretudo, pelo processo de construção de suas decisões. A sua legitimidade está atrelada ao conteúdo material de suas manifestações e aos fundamentos que enuncia — e não tão somente formal, pelos seus comandos finais.

 

Os organismos internacionais não devem cair na tentação de converter-se em uma instituição com o monopólio de poder dizer, de forma absoluta, o certo e o errado. As instâncias internacionais não podem assumir a condição de julgador moral supremo, e muito menos subestimar completamente os processos democráticos internos. Por isso, os organismos do sistema internacional devem evidenciar a construção argumentativa de suas decisões, considerando as razões dos julgados nas instâncias internas, em uma dinâmica de reconhecimento mútuo. Do contrário, reafirmam-se como instrumentos de dominação.

 

O Brasil vive um momento necessário de amadurecimento democrático, que precisa enfrentar errando, corrigindo e refletindo sobre cada passo. Nem a maioria pode assumir um papel opressor nem o instrumental contramajoritário dos direitos humanos pode sufocar os processos de amadurecimento democrático. De um lado, está o aspecto para o qual o filósofo Herbert Hart chama atenção: o maior problema da democracia não é simplesmente o poder que a maioria pode usar para oprimir a minoria, mas a disseminação da ideia de que seja inquestionável que a maioria deve fazer isso. De outro lado, o alerta posto pelo filósofo Tzvetan Todorov, para o risco representado pelos representantes da Igreja institucional que se inspiram na frase emblemática de Bossuet: “Eu tenho o direito de perseguir-vos porque tenho razão e vós estais errados”.

 

Nenhuma das duas perspectivas pode prevalecer isolada — da força da ordem jurídica interna, pela maioria democrática, ou da força da internacional, pela autoridade e autoatribuição de razão superior. Não se pode ignorar a importância das opiniões emitidas pelos órgãos internacionais como elemento para o debate nem se pode substituir sumariamente o processo democrático e as decisões regulares dos tribunais internos pela opinião internacional. O papel dessas instâncias internacionais é fornecer elementos argumentativos e plano de valores para reflexão crítica e diálogo, e não surgir como outra igreja institucional, pretensamente superior do ponto de vista moral, e que sem participar do contexto com profundidade, sem respeitar as razões de cada decisão tomada pelos legisladores e pelos tribunais internos, pretenda exercer uma supremacia que não tem.

 

Tudo o que o Brasil tem vivido servirá como experiência de aprendizado e amadurecimento democrático, e a experiência ganha uma nova dimensão para reflexão sobre a relação entre o Direito interno e o internacional, que deve ser de respeito e de reconhecimento mútuo, e não de sobreposição.

 

 

 

Saulo Stefanone Alle é advogado do Peixoto & Cury Advogados, doutor e mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP).

 

 

Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2018, 6h17/Site Conjur

A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet/Google

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