Naturais divergências interpretativas não geram insegurança jurídica
Opinião
Publicado em 23/03/2018

 

 

22 de março de 2018, 8h00

 

Por Adilson Abreu Dallari

 

Direito é divergência. Divergências entre juristas são absolutamente inevitáveis. Para que se possa aplicar qualquer dispositivo legal a um caso concreto, é preciso interpretá-lo, para extrair do enunciado a norma nele contida. O grande problema está em que não há possibilidade de se chegar a um resultado único e inquestionável. Ao contrário, divergências interpretativas são naturais e inevitáveis, pois é pacífico o entendimento de que as normas jurídicas comportam uma pluralidade de interpretações. Diferentes juristas, partindo de diferentes premissas e valorando de maneira diferenciada determinados princípios jurídicos, podem dar à mesma norma interpretações totalmente divergentes.

 

No âmbito do Poder Judiciário, é absolutamente normal a reforma de decisões, sem que isso represente uma censura ou um demérito para o prolator da decisão reformada. Quem decidiu em primeiro lugar optou por uma entre as interpretações possíveis, por considerar que essa seria a melhor interpretação comportada pelo caso em exame, ao passo que o órgão reformador entendeu que outra seria, a seu juízo, a melhor decisão entre as possíveis.

 

No âmbito acadêmico ou científico, um parecer jurídico é um trabalho técnico destinado a estudar uma questão controvertida e apresentar, fundadamente, a melhor solução cabível, a juízo do seu signatário. O acatamento conferido a um determinado parecer vai depender, em parte, da confiabilidade de seu signatário, mas, em parte mais relevante, da consistência e coerência dos argumentos que sustentam a conclusão. Daí a necessidade de extremado rigor no exame das normas que afetam a questão em estudo, cuja interpretação deverá ser feita considerando o contexto em que estão necessariamente inseridas.

 

Além disso, também é fundamental a necessidade de interpretação evolutiva, segundo a qual as normas devem ser interpretadas não em face do ambiente existente quando de sua edição, mas, sim, de acordo com as circunstâncias vigentes no momento de sua aplicação. Já tivemos a oportunidade de tratar do assunto em artigo publicado: “Toda norma legal, inclusive constitucional, decorre de um ambiente político, social e econômico vigente no momento de sua edição. Mas esse ambiente muda com o decorrer do tempo, exigindo do intérprete e aplicador da lei um esforço de adaptação, para que possa dar a correta solução aos problemas emergentes. É certo, portanto, que a melhor interpretação da lei (entre as várias possíveis) vai variar ao longo do tempo de sua vigência. Uma interpretação incontestavelmente correta adotada em um momento do passado, pode tornar-se inaceitável em ocasião posterior, pois obviamente, não faz sentido dar-se a mesma solução para um problema que se tornou diferente, em razão de alterações no plano da realidade fática” (Adilson Abreu Dallari, “Privatização, Eficiência e Responsabilidade”, in Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito Administrativo, obra em homenagem a Eduardo García de Enterria, coordenador Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Editora Renovar, 2003, p. 211).

 

Essa convicção é antiga. Em trabalhos publicados nos anos 1970 e 1980 já constava o entendimento de que o jurista não pode ter postura anacronicamente conservadora, esforçando-se para deter o tempo, com olímpica ignorância no que diz respeito às transformações da sociedade contemporânea. Tais transformações se aceleraram e se avolumaram nos tempos atuais. A interpretação sistemática e evolutiva, quando honesta e correta, não procura obscurecer disposições cristalinas, nem, por via indireta, retirar conclusões contrárias às afirmações contidas nas normas isoladas, mas, sim, deve retirar destas entendimento compatível com o sistema jurídico e, principalmente, com seus princípios informadores.

 

Atualmente, o ministro Roberto Barroso tem sido criticado por seus entendimentos inovadores, sendo até acusado de estar reescrevendo a Constituição. Independentemente de se concordar ou não com seus entendimentos, deve-se levar em consideração sua coerência, ou seja, suas decisões como ministro seguem aquilo que professava e ensinou como professor e jurista. Confira-se: “A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto” (LUÍS ROBERTO BARROSO, Interpretação e Aplicação da Constituição, 3º edição, Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 276).

 

O grande problema, hoje em dia, são as interpretações decorrentes não de fundamentos doutrinários, mas, sim, de convicções político-partidárias e ideológicas, ditadas pela conveniência e pelo interesse pessoal ou de amigos e correligionários. É muito comum, na grande imprensa, nos meios de comunicação em geral, a confusão entre as várias funções que podem ser desempenhadas pelos profissionais do Direito. Qualquer bacharel que tenha dado qualquer palpite sobre uma questão jurídica é logo tratado como jurista, nivelando todo e qualquer entendimento, muito especialmente aqueles totalmente despropositados e intelectualmente desonestos. Muda-se de entendimento jurídico como se muda de camisa, conforme a conveniência. É preciso que se faça uma distinção entre jurista, advogado e chicanista.

 

Jurista é aquele que tem uma linha de pensamento, expressada através de um conjunto de estudos publicados, que guardam entre si uma correlação lógica e especialmente uma plena coerência. A função do jurista, do doutrinador, é apresentar aquilo que ele entende como uma verdade científica. O jurista digno desse nome não pode, para defender um caso específico, sustentar algo diferente daquilo que afirma em seus estudos.

 

O advogado comum, militante, defende interesses e pode, em suas petições, apenas apresentar os argumentos favoráveis ao seu cliente. O defensor da parte contrária certamente fará a mesma coisa. O juiz sopesará os argumentos produzidos por ambos e decidirá. O advogado comum não tem um compromisso com a verdade científica. O compromisso do advogado é com a ética profissional, com a lealdade processual. Advocacia sem ética é prostituição.

 

O chicanista não tem compromisso algum. Defende qualquer tipo de interesse, lícito ou ilícito, não tem qualquer preocupação com a coerência e, muito menos, com a ética. Seu intento fundamental é o de atrapalhar o funcionamento da Justiça, criando mil problemas fantasiosos ou inexistentes, ou, por outro lado, criando atalhos para conseguir o incabível. Muitas vezes o chicanista (que pode exercer qualquer uma das atividades dos profissionais do Direito — inclusive na magistratura) atua como lobista, valendo-se de relações de parentesco, amizade ou compadrio para atingir seus nefandos objetivos.

 

Um dos mais básicos e elementares princípios jurídicos é o da segurança jurídica, que depende da estabilidade das normas e, muito especialmente, de seu entendimento. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (18/3/2018, p. A2), sob o expressivo título de “Insegurança Jurídica”, o emérito professor Celso Lafer critica o ativismo judicial, que “vem substituindo o governo das leis pelo imponderável do governo dos homens”, destacando que a doutrina vem perdendo seu papel de orientação e que as oscilações da jurisprudência geram desconfiança no sistema jurídico.

 

Para dar concreção e objetividade a essas considerações, é conveniente que se cuide de alguns casos concretos. O mais sério é o que vem acontecendo a respeito da presunção de inocência em oposição à possibilidade de prisão após decisão de segunda instância. Sobre os aspectos jurídicos dessa questão, já nos manifestamos no texto Literalidade faz da presunção de inocência uma garantia de impunidade, publicado neste mesmo espaço em 22/2/2018. Agora, o que se quer destacar é o clima de guerra sobre o assunto, diante da evidência de pressões indevidas no sentido de que o STF modifique sua jurisprudência, para atender compromissos pessoais e favorecer pessoas perfeitamente determinadas. Isso, sim, seria reescrever a CF, tornando inócuos os princípios republicano e da igualdade de todos perante a lei.

 

Outra controvérsia deu-se quanto à possibilidade de investigação de atos do presidente da República, contrariando o disposto no artigo 86, parágrafo 4º, da CF, que, ao tratar exatamente da possibilidade de responsabilização do presidente por crimes comuns ou de responsabilidade, proíbe a responsabilização do presidente por atos estranhos ao exercício de suas funções na vigência do mandato. Isso nada tem a ver com irresponsabilidade, pois ele poderá ser processado ao término do mandato. Não há qualquer semelhança com a “pessoa do imperador”, que era sagrada e não estava sujeita a responsabilidade alguma. O texto constitucional em vigor não protege a pessoa do presidente, mas, sim, o munus, a função, o cargo, o mandato de presidente da República, para dar eficácia à independência dos poderes.

 

Em sentido contrário, há quem sustente a equivalência entre o presidente da República e o imperador, no tocante à concessão de indulto a condenados, prevista no artigo 84, XII, da CF, sem qualquer limitação expressa. Ora, não existe direito ilimitado; direito é limitação. A falta de menção expressa não significa poder absoluto e incontrastável. Na falta de limitação expressa, sempre haverá limitação implícita, decorrente do sistema jurídico e de seus princípios. Ninguém imaginaria que o presidente pudesse conceder indulto a todos os sentenciados, nem a uma pessoa determinada por razões pessoais, desprovidas de qualquer motivação. A competência atribuída a uma autoridade jamais comporta o abuso ou desvio de poder. Indulto não é moeda para a compra de votos parlamentares.

 

Em síntese, a presente situação de insegurança jurídica não decorre das naturais divergências interpretativas, mas, sim, de interpretações tendenciosas e intelectualmente desonestas, como se o sistema jurídico tivesse sido dominado por chicanistas. Felizmente, o Brasil conta com uma plêiade de jovens juristas altamente qualificados e de integridade inquestionável. Estes devem ser ouvidos.

 

 

 

 

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e Consultor Jurídico.

 

 

Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2018, 8h00 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet

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